Dona sofia, ofélia e uma velhinha sem nome: palavras, traços e cores que narram velhices.

- DONA SOFIA, OFÉLIA E UMA VELHINHA SEM NOME -  PALAVRAS, TRAÇOS E CORES QUE NARRAM VELHICES.

BANDEIRA, Larisa da Veiga Vieira¹

(Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

sun.writer@hotmail.com

Quando contamos uma história para as crianças emprestamos nossa voz para o autor. Ouso dizer que a história infantil tem três autores, o autor do texto, o ilustrador e o contador. Responsabilidade imensa tem o contador nesse espaço de projeções, reflexões e de vazios para que o texto aconteça. O contador/narrador deve ser um leitor simbólico capaz de aproveitar toda riqueza que emerge do texto. Na voz, o contador carrega o drama, a alegria, o colorido da história, ou, pode fazer com que o encantamento da autoria seja transformado em território vazio e inóspito.

Qual voz emprestamos para narrar a Velhinha criada pelas palavras de CYNTHIA RYLANT e pelo traço de KATHRYN BROWN? Uma voz marinada pelo ar da praia e pelos muitos anos que ela ali vive? Uma voz que entra em acordo com o desengajamento, com o final de uma vida? Uma voz que aprende de novo a investir na vida com afeto e esperança? Uma voz que mostre uma possibilidade de envelhecer dignamente?

Nas transparências das ilustrações de FRIEDRICH HECHELMANN, no texto sublime de MICHAEL ENDE, somos convidados a participar da encenação do ato final da vida de Ofélia. Traço e palavra em um cenário fantasmagórico são acolhidos e aceitos por uma senhora que viveu dando palavras às vozes dos outros. Qual voz narra uma vida minúscula e invisível?

ANDRÉ NEVES escreveu e ilustrou Dona Sofia, uma senhora dedicada às palavras. Na casa de Dona Sofia traço e poesia confabulam e ganham as ruas da cidade. Que voz emprestar para contar aquilo que de tão intenso transborda com o tempo? E em que no espaço em que se vive não se pode mais guardar?

Possibilidades de envelhecer, “envelheceres” diferentes, ou algumas vezes, muito parecidos com os que as crianças conhecem. De muitas formas o envelhecer é apresentado à infância, através dos livros, dos filmes, da voz dos seus narradores. Quais vozes falam para as crianças sobre vida, envelhecimento e morte?

Utilizarei para essa abordagem as teorias sociológicas clássicas sobre o envelhecimento - Atividade, Desengajamento e Modernização - que impulsionaram a pesquisa e o trabalho prático com as pessoas idosas até os dias de hoje, sob a perspectiva dos estudos de Johannes Doll acerca da gerontologia. A aproximação possível da literatura infantil com as teorias sociológicas, a aproximação da velhice com a infância, será mediada pelos três livros escolhidos e pela riqueza simbólica que estes autores oferecem em suas imagens e textos. Não pretendo me entregar à árdua tarefa de explicar as três teorias minuciosamente, mas de utilizá-las como possibilidades de olhar de diferentes formas para a velhice e de produzir diferentes sentidos para a leitura e para os novos leitores.

Era uma vez – Uma velhinha sem nome

Quando vem a taciturna e poda as tulipas:

Quem sai ganhando?

Quem perde?

Quem aparece na janela?

Quem diz primeiro o nome dela?

Paul Celan

No livro A Velhinha que dava nome às coisas, as autoras nos apresentam uma velhinha que dá nome a todas as coisas que tem em sua casa. Do carro a cama todos os objetos que ela possui tem um nome, todos os objetos que sobreviverem a ela são merecedores de um nome, somente ela não tem nome algum. As autoras reconhecem a personagem pela sua condição de velhinha, a velhice é maior que a mulher e seu nome, a velhice a caracteriza e a nomeia. Uma primeira questão aparece quando não temos um nome para essa personagem, como chamamos as velhinhas que conhecemos?

Um não nome, uma ausência do nome, para lembrar, para sinalizar sua importância. Sutileza possibilitada pela escrita e pela ilustração sensível e pela leitura empreendida pelos seus contadores.

O nome da Velhinha não aparece. Em nenhum momento do livro sabemos como ela se chama. Sabemos que ela mantém uma rotina, é organizada, tem contas para pagar, mas, não sabemos seu nome. O quê significa ter um nome? Ser chamado por ele? Como é não ter ninguém que pronuncie seu nome? A Velhinha sabia da importância de um nome, um nome próprio, único, que representasse seus objetos de afeto, tanto sabia que nomeava as coisas que preenchiam sua vida. E estas coisas tinham utilidade, importância e alguém para reconhecê-las pelo nome.

O nome pode ser também o reconhecimento da importância de alguém em um determinado contexto, no trabalho, na família, na comunidade. Mas, quando não mais trabalhamos, não temos mais familiares próximos geográfica ou afetivamente, não participamos mais de atividades na comunidade, vivemos em nossas memórias e assuntos de nossa vida privada, doméstica e solitária, precisamos ter um nome?

Infância e velhice, nomes que abrigam legiões, crianças e velhinhas, as “as coisa fofas” e as “acabadas”, as “pestinhas” e as “ranzinzas”, as que aprendem e as que esquecem, as que agora começam e as que já estão terminando e muitas outras. Outras sem nome.

Sem nome, sem laços com outras pessoas a Velhinha trás no início de sua história um distanciamento resultante da diminuição das interações sociais (todos seus amigos já haviam morrido), sem envolvimento com outros, vive só com seus objetos pessoais. Características apontadas na teoria do Desengajamento¹, nesta teoria, envelhecimento é um acontecimento mútuo e inevitável de retirada, resultando em diminuição nas interações entre a pessoa que está envelhecendo e os membros que compõe seu sistema social (DOLL, et all.p.14. 2007). Mas, esses autores lembram também que esse tipo de teoria tende a universalizar demais, levando a formas de explicações pouco precisas.



¹Formulada por Cumming e Henry, no livro Growing Old (1961), baseada nos dados de uma pesquisa realizada em Kansas City com pessoas entre 50 e 90 anos física e financeiramente auto-suficientes.

Na história da Velhinha aparece um cachorrinho sem nome, um cachorro que ainda não tem importância, que ainda não foi significado pelo afeto de alguém. Um cão, um ser vivo que corria o risco de morrer antes dela.

O cãozinho passa a receber a atenção da velhinha, porém, fica muito tempo sem ter um nome, mesmo aparecendo todos os dias no portão. Um dia o cão não aparece, a tristeza toma conta, chove na página do livro. Ela sai de casa para procurar um cão, um cão sem nome. Um cão anônimo, que não pertence a ninguém. Nessa procura ela pensa no nome que vai dar a ele, recorda então de seus amigos e do nome de cada um deles, percebe o privilégio de ter tido tantos amigos. Finalmente pensa no nome de seu novo amigo “Sortudo”, como ela, uma “velha sortuda”.

Velhice, a sombra do que fomos... À sombra... Sombria

É alguém que tem meus olhos.

Tem-nos desde quando portas se fecham.

Carrega-os no dedo, como anéis.

Carrega-os como cacos de desejo e safira:

era já meu irmão no outono;

conta já os dias e noites.

Paul Celan

O livro O Teatro de Sombras de Ofélia conta a história de uma velha senhora chamada Ofélia que trabalhava em uma caixa escondida nos limites de um palco, por ter uma voz fraca, quase inaudível, podia soprar os textos para os atores de teatro. Fez isso durante toda sua vida, não precisava mais ler as falas. Sabia todas.

Mas, nada pode deter o tempo e suas mudanças, o teatro foi fechado, e, o único lugar que Ofélia ocupou na vida não tinha mais utilidade. Sem trabalho, ou, um espaço para ocupar, Ofélia começa a ser assediada por sombras. Resignada ela acolhe generosamente todas que se apresentam, divide sua pequena vida com elas. De forma sutil se confunde com estas sombras, talvez as formas mais próximas de tudo que foi na vida, uma sombra dentro de uma caixa.

Quando começa a ser vista fora da caixa que a escondia, quando começou a transitar com uma bolsa cheia de sombras, Ofélia começou a ser percebida como alguém esquisita que deveria ir para um asilo. Ela então resolve partir com suas sombras, no caminho, vencida pelo cansaço, cai no sono. Enquanto dorme as sombras resolvem ajudar e iniciam o teatro de sombras de Ofélia que faz sucesso entre crianças e adultos. Ela corre o mundo com sua trupe sombria, junta dinheiro e compra um carro.

Nesse ponto do livro o autor lembra que a história poderia terminar ali, porém mais uma sombra visita Ofélia e ela prontamente a acolhe e deixa que esta a envolva. Em sua última cena não mais na precariedade de seu corpo velho, mas na suntuosidade de um teatro novo, na luz da eternidade, Ofélia deixa para trás todas as sombras da condição humana.

E no céu inicia então a eterna encenação do Grande Teatro de Luzes de Ofélia, onde os anjos aprendem a grandeza e a mesquinharia de viver na terra.

O teatro em que Ofélia trabalhou toda sua vida ficava em uma cidade pequena e velha, onde seus moradores começaram a substituir o teatro pela televisão. O número de carros da cidade também havia aumentado e seus habitantes deslocavam-se com rapidez para cidades maiores para assistir uma peça com artistas mais conhecidos.

As marcas da transformação assolaram a vida de Ofélia, a Modernização² oferece para ela um declínio do status do papel que desempenhava na comunidade, mesmo que pequeno e invisível. Em uma sociedade onde o trabalho é fortemente valorizado e também, o individualismo e a igualdade, a situação se torna menos favorável para os idosos. Característica das sociedades industrializadas a aposentadoria compulsória, o rápido acúmulo de informações e a inovação constante do saber tornam os mais velhos sinônimos de ultrapassados, desprovidos de um papel social.

A possibilidade oferecida por Ofélia aos seus leitores é a morte, não a morte como fracasso, como castigo, mas, morte como fim da vida na terra e de suas implicações físicas. É um livro de aceitação e resignação com aquilo que acaba. Que faz do trabalho, da atividade, da função e utilidade da pessoa e

²Teoria baseada na obra Aging Around the World, de Cowgill, 1986. O valor explicativo dessa teoria auxilia hoje trabalhos sobre o uso de recursos da informática por pessoas idosas.

as suas possibilidades de viver. Ela apresenta a realização do trabalho não como produção que resulta em remuneração, mas, do trabalho que se faz com prazer. Ofélia corre o mundo, sai de sua própria sombra e morre. A morte é o contra-regra, a cortina, o bastidor e o ato final dessa história.

Dona Sofia - Quando o que somos transborda.

E diz por último o nome dela.

É alguém que tem o que eu disse.

Carrega-o debaixo do braço como um embrulho.

Carrega-o como o relógio a sua pior hora.

Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora.

Paul Celan

No livro A Caligrafia de Dona Sofia traço e palavra tem a mesma autoria, o autor nos apresenta uma velha senhora, professora aposentada que cultivava junto com suas flores (que complementavam sua renda de aposentada) diversos prazeres. Os prazeres de ler, de escrever e de ensinar.

A casa de Dona Sofia era decorada com sua bonita caligrafia com os versos de inúmeros poetas, chão, paredes, teto, móveis, tudo era coberto de poesia. Apesar da distância de sua casa do restante da cidade, apesar de se encontrar na mais alta colina diferente de todos os outros habitantes da história, a velha senhora tinha também cultivado o prazer da amizade. Seu Ananias, o carteiro da cidade a visitava diáriamente ajudando-a em suas tarefas e aprendendo com ela a apreciar os versos.

Um dia Dona Sofia percebe que sua casa tornara-se pequena para conter tantas poesias que estavam escondidas nos livros, resolve então dedicar para cada morador da cidade cartões poéticos decorados com flores cultivadas por ela mesma, com a ajuda de seu amigo, os cartões são distribuidos na cidade.

Com a intensificação do contato entre seu Ananias e Dona Sofia o interesse dele pelas poesias e pelos estudos aumentou, ele pode perceber que os cartões que eram enviados por ela fizeram com que todos na cidade começassem a ler, conversar e recitar poesias. Curioso para entender porque Dona Sofia escrevia apesar de não receber nenhuma resposta ele subiu mais uma vez a colina para perguntar. Dona Sofia explicou que fazia por que gostava, que isso não a cansava e porquê sabia que alguém em alguma casa esperava um versinho. O amigo então tem uma idéia e resolve contar aos moradores da cidade um pouco sobre tudo que aprendeu com Sofia, valorizando o presente que ela enviava, resgatando a memória de suas aprendizagens os habitantes da história passam a escrever respostas para seus cartões poéticos e a visitá-la, fazendo com que a alegria tomasse conta dela.

Através de uma atividade informal realizada com um amigo Dona Sofia obtém uma ligação direta com a satisfação de vida. Para MCCLELLAND, um dos autores que abordam a teoria da Atividade³ duas hipóteses explicam como os idosos se ajustam às mudanças relacionadas com a idade, a primeira aponta que pessoas mais velhas ativas são mais felizes e a segunda pontua a substituição de antigos papéis por novos para manter o seu lugar na sociedade.

Dona Sofia constrói um lugar para sua velhice onde cultiva suas flores e seus prazeres, mantém seu lar aberto para novas possibilidades, escreve em suas paredes o que não quer esquecer, apesar da distância dos outros habitantes de sua história toca suas vidas com aquilo que transborda e vai além dos limites de sua casa.

Três velhinhas, três histórias, três teorias, muitas outras formas de narrar a velhice.

ainda no último

e gasto

nó de ar

estás lá com uma

faísca

de vida.

Paul Celan

Quando contamos/narramos uma história para nossas crianças/alunos podemos estabelecer uma prazerosa forma de diálogo, guiados pelas palavras,

³Teoria desenvolvida no final da década de 40 teve dois diferentes momentos seu autor Havighurst propõem inicialmente conceitos na perspectiva life span e depois desenvolve em 1961 um conceito implícito à teoria o successful aging.

pelos traços e pelas cores, na forma com essas coisas se organizam e revelam seu conteúdo.

Cada livro é uma escolha do professor/contador de história que pode (re) significar de forma sensível e reflexiva, diferentes concepções de velhices, de morte, de vida. Através das narrativas oferecidas por esses três livros que confabulam com imagens produzindo novos caminhos em torno dos sujeitos leitores acerca do tempo e de como o vivemos. Idéias sobre o envelhecer que suscitarão novas perguntas e novas questões. Idéias que poderão ajudar a desconstruir os mitos sobre a velhice entre as crianças pois:

...a velhice representa uma fase de vida que pode ser muito longa – dos 60 anos até 100 anos ou mais. Então, todas as "verdades" sobre a velhice também podem ser "não-verdades" e vice-versa. Talvez a maior "não-verdade" seja exatamente a existência de uma velhice com características bem definidas. Na verdade, existem muitas velhices. DOLL.

Três livros, três pistas, três teorias que não se propõem a oferecer todas as respostas, três velhas senhoras com suas bagagens repletas de memórias, sombras, e poesias. Diferentes formas de viver a velhice e suas implicações, que podem fazer reflexões sobre os conceitos sociológicos. Três personagens que podem nos fazer pensar sobre o bem-estar, o aceitar, o entender as transformações, os ganhos e as perdas, mas, mais do que isso mostram que não existem somente três maneiras de se envelhecer, que podemos mudar de idéia, de cidade, que vamos perder o trabalho, os velhos amigos. Mas, que podemos também fazer novos amigos, dedicar nosso tempo a novas formas de fazer o que gostamos e que sim, se formos sortudos, vamos morrer velhinhos!

Referências:

CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil – dinâmicas e vivências na ação pedagógica. São Paulo. Paulus. 2002.

DOLL, Johannes; GOMES, Ângela; HOLLERWEGER, Leonéia; PECOITS, Rodrigo Monteiro; ALMEIDA, Sionara Tamanini. Atividade, Desengajamento, Modernização: teorias sociológicas clássicas sobre o envelhecimento. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento. Porto Alegre, v.12, p. 7-33. 2007.

ENDE, Michael;FRIEDRICH, Hechelmann(ilust). O Teatro de sombras de Ofélia. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo. Ática. 2004

NEVES, André. A Caligrafia de Dona Sofia.São Paulo: Elementar.2001.

RYLANT, Cynthia; BROWN, Kathryn(ilust.). A Velhinha que dava nome às coisas. Tradução Gilda de Aquino. São Paulo. Brinque-Book. 2003.

Existem muitas velhices – Entrevistas com Johannes Doll disponível em:

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=141

site visitado em 11/08/2009.

Poemas de Paul Celan disponível em:

http://www.culturapara.art.br/opoema/paulcelan/paulcelan.htm

site visitado em 11/08/2009.



Para citar utilize:

BANDEIRA, L. V. V. Dona sofia, ofélia e uma velhinha sem nome: palavras, traços e cores que narram velhices. In: 4º Seminário de Literatura Infantil e Juvenil de Santa Catarina, 2009, Palhoça. Anais do 4º. SLIJSC. Palhoça : Unisul, 2009. p. 30-31.